20101108

A Varanda do Frangipani, Mia Couto

Sou desses mortos a quem não cortaram o cordão desumbilical.

Padeci tais fomes que só não morri porque a morte não me encontrou, tão magro que estava.

São estes pretos que todos os dias me semeiam. (...) Desculpe-me este meu português, já nem sei que língua falo, tenho a gramática toda suja, da cor desta terra.

A velhice o que é senão a morte estagiando em nosso corpo?

Porque a memória me chega rasgada, em pedaços desencontrados. Eu quero a paz de pertencer a um só lugar, eu quero a tranquilidade de não dividir memórias. Ser todo de uma vida. E assim ter a certeza que morro de uma só única vez. Custa-me ir cumprindo tantas pequenas mortes, essas que apenas nós notamos, na íntima obscuridade de nós. Me deixe, inspector, que eu acabei de morrer um bocadinho.

... a árvore, dizia ele, tem alma eterna: a própria terra. A gente toca o tronco e sente o sangue da terra circular em nossas íntimas veias.

- (...) já viu a garça a adormecer?
(...)
- Ela tapa a cara com a asa. Como o homem quando chora. A garça tem vergonha de dormir às vistas do mundo.

Ela dormia fora porque aqueles quartos lhe davam uma tristeza de caixão sem cova.

Os únicos que conhecem a verdadeira cor do mar são as aves que olham de um outro azul.

Nessa altura eu não sabia que, bem vistas as contas, somos todos mulatos. Só que, em alguns, isso é mais visível por fora

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