20080713

História do Mundo em Nove Guitarras, Erik Orsenna.

Tinha os cabelos brancos, do pó ou da idade. (…)
O seu rosto parecia ter sido cavado por chuvas inverosímeis. A barba sal-e-pimenta que lhe comia as faces, dir-se-ia que a deixara crescer para que segurasse um pouco de carne. De outro modo, as enxurradas teriam levado tudo.

Lucy in the Sky prosseguia, baixinho. Mal terminava, a canção recomeçava.
- Você só gosta de Beatles? – perguntou Eric Clapton.
… o velho arqueólogo:
- Sobretudo desta canção. Não parávamos de a ouvir quando descobrimos a nossa avó, cinquenta e dois ossos perfeitos, a primeira verdadeira mulher na história do mundo, há três milhões de anos. Compreende porque lhe chamámos Lucy.

A Terra era a mãe de todos. Falava-se-lhe com flautas e tambores. Ela respondia com o rugido dos vulcões, o murmúrio das florestas, o chilrear das fontes.

As suas notas não encontravam eco. Batiam no vazio. Todas as palavras de que o universo era capaz tinham ficado na garganta do imperador Atahualpa.

A guitarra ia dar filhos por toda a parte, uma família infinitamente diversa, com as formas e os materiais mais esquisitos, uma família que em breve cobriria o planeta. A vergonha, o desgosto, o silêncio nunca mais resistiriam a todas essas guitarras. As guitarras eram os cavaleiros da aliança tumultuosa da Terra com os homens.

A noite africana é um navio sem âncora, diz Clapton.

Há três casais que contam neste mundo: um homem e uma mulher, um homem e o seu cavalo, um homem e a sua guitarra….

A amizade não é um fio de lã e os nós nem sempre se aguentam.
O que é que mantém uma amizade? Pensa-se que vai durar até à morte. E depois a vida, as ciumeiras minúsculas, as feridas escondidas vão pouco a pouco afastando as pessoas. Afastam-se como dois navios no mar. Primeiro insensivelmente, como a contragosto. Depois cada qual vai para o seu sítio e desaparece num ponto do horizonte.

Poderá o próprio mar por vezes sentir vergonha?

Paganini compunha. Compunha furiosamente. (…)
Tenho dedos irrequietos. Não sabem estar parados. Tamborilam todas as superfícies possíveis. Batem o compasso nas paredes, nas mesas, na minha carteira da escola. Vivem vida própria, não posso fazer nada. Bem lhes digo que parem, não ouvem.

A música é a aliada dos inícios, como a luz apagada para fazer amor, da primeira vez, entre tímidos.

2 comentários:

Anastácio Soberbo disse...

Olá, gosto do Blogue.
É bonito e bem feito.
Quem corre por gosto não cansa. Parabéns!
Já li todo o conteúdo, mas deixo aqui o comentário porque é o dia do meu nascimento.
Saudações de,
Soberbo

Carla Veríssimo disse...

Obrigada!
Belas fotos no seu blog... Deixam sonhar.......