20080114

A criança em ruínas, José Luís Peixoto


Arte poética
o poema não tem mais que o som do teu sentido,a letra p não é a primeira letra da palavra poema,o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se ervafresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em milárvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procurade cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormese me fizeste nascer de ti para ser palavras que nãose escrevem, lê-se país e mar e céu esquecido ememória, lê-se silêncio, sim, tantas vezes, poema lê-se silêncio,lugar que não se diz e que significa, silêncio do teuolhar de doce menina, silêncio ao domingo entre conversas,silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silênciode ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poemacalado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, emsegredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz,a letra p não é a primeira letra da palavra poema,o poema é quando eu podia dormir até tarde nas fériasdo verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eufui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu nãoconhecia a palavra poema, quando eu não conhecia aletra p e comia torradas feitas ao lume da cozinha doquintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papele deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimase sem metáforas, que te amo, o poema será quando as criançase os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre e tudo.o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chamapoema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro desi é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar paraabraçar o pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudoo que quero aprender se o que quero aprender é tudo,é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento,não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso sãobibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é araiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só nós podemosconhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é umtorrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entreos versos e o mundo, o poema não é a palavra poemaporque a palavra poema é uma palavra, o poema é acarne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobreos telhados na hora em que todos dormem, é a últimalembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança.o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos,tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-secom grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos eincertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema,a palavra poema existe para não ser escrita como eu existopara não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer pormim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugaresonde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque meolhas, o poema é o teu rosto eu, eu não sei escrever apalavra poema eu, eu só sei escrever o seu sentido.

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