20090723

A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera

O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. Mas, na poesia amorosa de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o fardo do corpo masculino.

Nunca se pode saber o que se deve querer porque só se tem uma vida que não pode ser comparada com vidas anteriores nem rectificada em vidas posteriores.

Mas o que vale a vida se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É o que faz com que a ida pareça um esquisso. Mas nem mesmo «esquisso» é a palavra certa, porque um esquisso é sempre o esboço de alguma coisa, a preparação de um quadro, enquanto o esquisso que a nossa ida é, não é esquisso de nada, é um esboço sem quadro.
(…) einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é pura e simplesmente como não viver.

… as metáforas são uma coisa perigosa. Com as metáforas não se brinca. O amor pode nascer de uma única metáfora.

O amor não se manifesta através do desejo de fazer amor (desejo que se aplica a um número incontável de mulheres), mas através do desejo de partilhar o sono (desejo que só se sente por uma única mulher).

Mas um encontro não é precisamente tanto mais importante e cheio de significação quanto mais depende de um grande número de circunstâncias fortuitas?
(…)
Para um amor se tornar inesquecível é preciso que, desde o primeiro momento, os acasos se reúnam nele como os pássaros nos ombros de São Francisco de Assis.

Se o homem do talho tivesse vindo sentar-se a uma mesa do restaurante em vez de Tomás, Tereza não teria reparado que a rádio estava a dar Beethoven (embora o encontro de Beethoven com um homem do talho também não deixe de ser interessante).

(…) a vida humana (…) É composta como uma partitura musical.

Não há, portanto, razão nenhuma para censurar aos romances o seu fascínio pelos misteriosos cruzamentos dos acasos (…), mas há boas razões para censurar o homem por ser cego a esses acasos na sua vida quotidiana e assim privar a vida da sua dimensão de beleza.

O sonho é a prova de que imaginar, sonhar com o que nunca existiu, é uma das necessidades mais profundas do homem.

Quem vive no estrangeiro deixa de ter por debaixo de si a rede de segurança que é, para todo o ser humano, o país natal, o país onde se tem a família, os colegas, os amigos e onde é fácil fazermo-nos entender na língua que conhecemos desde crianças.

Nos dias que correm, quem apaga a luz para fazer amor arrisca-se a cair no ridículo; (…) No entanto, no momento em que penetra em Sabina, fecha os olhos.
A volúpia que o invade exige a obscuridade. (…) uma obscuridade que é o infinito que cada um de nós tem em si (sim, porque quem busca o infinito só tem de fechar os olhos!).

Aprendeu messe dia que a beleza é um mundo traído. Só podemos encontrá-la quando aqueles que a perseguem a deixam por engano num sítio qualquer. A beleza esconde-se atrás dos cenários de um desfile do 1.º de Maio. Para dar com ela, primeiro é preciso furar a tela do cenário.

… se o túmulo está fechado com uma pedra, o morto nunca mais pode sair.

O campo de concentração é um mundo em que as pessoas estão condenadas a viver perpetuamente, de dia e de noite, umas em cima das outras. (…) é a liquidação total da vida privada.

Não tinha dois sacos pendurados abaixo dos ombros, mas uns seios relativamente pequenos. (…) Só não gostava daquelas auréolas grandes de mais e escuras de mais à volta dos mamilos. Se tivesse podido desenhar o seu próprio corpo, teria mas era uns mamilos discretos, delicados, pouco salientes em relação à curva do seio e de uma cor que mal se distinguisse da cor do resto da pele. Aqueles grandes alvos vermelho-escuros pareciam-lhe obra de um pintor de aldeia especializado em imagens obscenas para necessitados.

O que é a coquetterie? Pode talvez dizer-se que é um comportamento que deve sugerir que a aproximação sexual é possível, sem que essa eventualidade possa ser tida como certa. Ou, por outras palavras, a coquetterie é uma promessa de coito, mas uma promessa sem garantidas.

As retretes das casas de banho modernas erguem-se do chão como uma flor branca de nenúfar. Os arquitectos fazem os impossíveis para que o corpo esqueça a sua miséria e para que o homem não saiba o que acontece às dejecções das suas vísceras quando a água do autoclismo, a gorgolejar, as expulsa da vista. Embora os seus tentáculos se prolonguem até nossas casas, os canos de esgoto estão sempre cuidadosamente disfarçados e por isso não sabemos absolutamente nada a respeito das invisíveis Venezas de merda sobre as quais se encontram construídas as nossas casas de banho, os nossos quartos, os nossos salões de baile e os nosso parlamentos.

Tereza lembrava-se dos primeiros dias da invasão. As pessoas tinham roubado as placas de todas as ruas e os sinais de todas as estradas. O país tornara-se anónimo numa noite só. Durante sete dias, o exército russo errara por todo o país sem saber onde estava.

Depois de deixar a casa da mãe, julgara, como uma pobre idiota, que passaria a ser de uma vez por todas dona e senhora da sua vida privada. Mas a casa da mãe estendia-se pelo mundo inteiro e apanhava-a em todo o lado. Tereza não poderia nunca escapar-lhe em parte nenhuma.

Queria (…) olhar para a água porque ver água a correr acalma e cura. O rio corre de século para século e as histórias dos homens desenrolam-se nas suas margens.
Amanhã ninguém se lembrará delas e, por sua causa, o rio não deixará nunca de correr.

… tendo encontrado um recém-nascido abandonado, um certo pastor levou-o ao rei Políbio que o criou. Já adulto, Édipo cruzou-se um dia numa estrada de montanha com um carro de cavalos onde viajava um princípe desconhecido. Gerou-se uma confusão e Édipo matou o príncipe. Mais tarde, desposou a rainha Jocasta e tornou-se rei de Tebas. Não fazia a mínima ideia que o homem que matara nas montanhas era seu pai e a mulher com quem dormia, sua mãe. E, no entanto, o destino encarniçava-se contra os seus súbdito, cobrindo-os de pragas. Quando Édipo percebeu que o culpado dos seus males era ele, vazou os olhos com alfinetes e, cego para todo o sempre, deixou Tebas.

Quem pensa que os regimes comunistas da Europa Central são exclusivamente obra de criminosos deixa na sombra uma verdade fundamental: é que os regimes comunistas não foram edificados por criminosos, mas por entusiastas, convencidos de que tinham descoberto a única via possível para o paraíso. E defendiam essa via com unhas e dentes, chegando inclusivamente a mandar matar muito boa gente por causa disso. Mais tarde, tornou-se claro como a luz do dia que o paraíso não existia e, portanto, que os entusiastas eram assassinos.

… era o tímido sorriso de uma cumplicidade secreta: Era o sorriso que dois homens passam a trocar depois de se encontrarem por acaso num bordel; sentem uma certa vergonha, mas ao mesmo tempo, dá-lhes prazer que a vergonha seja recíproca. Ficam ligados por uma espécie de laço de fraternidade.

Se há algo que nos permite classificar os homens em categorias, é com certeza o desejo profundo que os guia para um dado tipo de actividade que exercerão toda a vida. Os Franceses são todos diferentes uns dos outros. Mas todos os actores do mundo se parecem (…) Actor é aquele que, desde a infância, aceita expor toda a sua vida ao público anónimo. Sem este assentimento fundamental, que não tem nada a ver com o talento e que é algo de muito mais profundo do que o talento, ninguém pode tornar-se actor. Do mesmo modo, o médico é aquele que aceita ocupar-se durante toda a vida, com todas as consequências que isso implica, de corpos humanos.

Quando se dá uma pancada com toda a força na cabeça de uma pessoa, ela fica estendida por terra e pode deixar de respirar de uma vez por todas. Mas, mais dia menos dia, sempre acabaria por deixar de respirar. O crime só antecipa aquilo de que o próprio Deus em pessoa se encarregaria um pouco mais tarde. E Deus, podemos supô-lo, previu o homicídio, mas não a cirurgia. Nunca lhe passou pela cabeça que, um belo dia, o homem se atrevesse a meter as mãos no mecanismo que ele inventara e cuidadosamente embalara, selara e fechara com pele para melhor o furtar aos seus olhos.

Ser cirurgião é abrir a superfície das coisas e espreitar para o que lá está escondido.

O que procurava em todas essas mulheres? O que é que o atraía? O amor físico não é sempre a eterna repetição do mesmo?
De forma nenhuma. Há sempre uma pequena percentagem de inimaginável. Quando via uma mulher vestida, embora, evidentemente, pudesse fazer mais ou menos uma ideia de como seria depois de despida (aqui a sua experiência de médico completava a do amante), restava sempre um pequeno intervalo de inimaginável entre a inexactidão da ideia e a precisão da realidade, e era precisamente essa lacuna que lhe tirava o sossego. E, depois, a busca do inimaginável não termina com a descoberta da nudez; vai para além dela: que caras fará enquanto se despe? o que dirá enquanto faz amor? em que tom suspirará? que ricto se imprimirá no seu rosto no momento da volúpia?

Como o femeeiro lírico gosta sempre do mesmo tipo de mulheres, quase nem se repara quando tem uma amante nova; os amigos causam-lhe sérios embaraços porque nunca vêem que a sua companheira já não é a mesma e tratam as suas amantes sempre pelo mesmo nome.

… as metáforas são perigosas. O amor começa com uma metáfora. Ou, por outras palavras, o amor começa no preciso instante em que, com uma das suas palavras, uma mulher se inscreve na nossa memória poética.

E, ainda uma vez mais, vejo-o tal como me apareceu no começo deste romance. À janela, a olhar para o prédio em frente do outro lado do pátio.
Foi dessa imagem que Tomas nasceu. Como já disse, as personagens não nascem de um corpo materno como os seres vivos nascem, mas de uma situação, de uma frase, de uma metáfora que contém em germe uma possibilidade humana fundamental, que o autor pensa que nunca ninguém descobrira antes dele ou então que nunca ninguém tratara de modo a dizer algo de essencial sobre ela.
Mas não se costuma dizer que um autor não pode falar senão de si próprio?
Olhar com angústia para um pátio sem conseguir tomar uma decisão; ouvir o gorgolejar obstinado da nossa própria barriga num minuto de exaltação amorosa; trair e não saber parar na estrada tão bela das traições; erguer o punho na manifestação da Grande Marcha; exibir o nosso bom humor perante os microfones invisíveis da polícia; eu mesmo vivi e conheci todas estas situações; porém, de nenhuma delas saiu a personagem que eu próprio sou no meu curriculum vitae. As personagens do meu romance são as minhas próprias possibilidades não realizadas. É o que faz com que goste igualmente de todas elas e também com que todas elas me assustem igualmente um pouco. Todas, sem excepção, atravessaram uma fronteira que eu só contornei. O que me atrai precisamente é essa fronteira que eu só contornei. O que me atrai precisamente é essa fronteira que elas atravessaram (a fronteira para lá da qual acaba o meu eu). Do outro lado, começa o mistério que o romance interroga. O romance não +e uma confissão do autor, mas uma exploração do que a vida humana é nesta armadilha em que o mundo se converteu.

Será preferível dar um grito que apresse o nosso próprio fim ou ficar calado e comprar uma agonia mais lenta?

… a vida humana só acontece uma vez e nunca podermos verificar qual era a boa e qual era a má decisão porque, em toda e qualquer situação, só podemos decidir uma vez. Não nos é concedida nem uma segunda, nem uma terceira, nem uma quarta vida para podermos comparar as diversas decisões.

… suponhamos que havia no universo um planeta onde pudéssemos vir ao mundo pela segunda vez. Ao mesmo tempo, lembrar-nos-íamos perfeitamente da vida passada na Terra, de toda a experiência já adquirida.
E talvez houvesse outro planeta onde viéssemos à luz pela terceira vez com a experiência das duas vidas anteriores.
E talvez fosse havendo sempre mais planetas onde a espécie humana fosse renascendo sempre um grau mais acima na escala da maturidade.
(…)
Nós, cá na Terra (no planeta número um, no planeta da inexperiência), não podemos ter senão uma ideia muito vaga do que aconteceria ao homem nos outros planetas. Tornar-se-ia mais sábio? Poderá alguma vez ter a maturidade ao seu alcance? Poderá ele chegar a ela através da repetição?
Só na perspectiva desta utopia é que as noções de pessimismo e de optimismo têm sentido. Optimista é quem pensa que a história humana será menos sangrenta no planeta número cinco. Pessimista, quem não acredita nisso.
Há duas rodas dentadas a girar em sentido contrário no relógio do nosso cérebro. Numa, há as visões, na outra, as reacções do corpo. O dente que tem a visão de uma mulher nua gravada engrena no dente oposto, onde está inscrito o imperativo da erecção. Quando, por qualquer razão, o mecanismo se avaria e o dente da excitação entra em contacto com o dente no qual está pintada a imagem de uma andorinha a voar, o nosso sexo levanta-se só por ver a andorinha.

Se a excitação é um mecanismo que depende de um capricho do Criador, e amor é, pelo contrário, aquilo que só nos pertence a nós e através do qual escapamos ao Criador. O amor é a nossa liberdade. O amor está para lá da necessidade...

Encontrava-se naquele no man's land onde já se não está a dormir e ainda se não está acordado.

… mito do Banquete de Platão: dantes, (…) os humanos eram hermafroditas e Deus separou-os em duas metades, que, desde então, erram pelo mundo à procura uma da outra. Amar é desejar essa metade perdida de nós próprios.

… Iakov, o filho de Estaline. Prisioneiro de guerra durante a Segunda Guerra Mundial, encontrava-se detido num campo onde também havia oficiais ingleses. As latrinas eram comuns. O filho de Estaline deixava-as sempre sujas. Os ingleses não gostavam de ver as suas latrinas cheias de merda, mesmo que a merda fosse do filho daquele que era então o homem mais poderoso do universo. Ralharam com ele. O filho de Estaline ficou ofendido. Os oficiais ingleses voltaram a repreendê-lo e obrigaram-no a limpar as latrinas. Zangou-se, discutiu com eles e agrediu-os. Por fim, pediu para ser recebido pelo comandante do campo. Queria que ele arbitrasse o diferendo. Mas o alemão estava demasiado imbuído da sua importância para deixar-se envolver numa discussão sobre merda. O filho de Estaline não pôde suportar tal humilhação. Lançando aos céus as pragas russas mais tremendas, correu em direcção ao arame farpado e electrificado que cercava o campo. Atirou-se contra os fios. Aí ficou suspenso o corpo que nunca mais havia de sujar as latrinas britânicas.

O filho de Estaline deu a vida pela merda. Mas morrer pela merda não é uma morte absurda. Os alemães que sacrificaram a vida para aumentar o território do império para leste, os russos que morreram para que o poder do seu país se estendesse mais para ocidente, esses sim, morreram por um disparate e a sua morte não tem qualquer espécie de sentido nem de valor geral. Em contrapartida, a morte do filho de Estaline foi a única morte metafísica no meio da estupidez universal da guerra.

Sem a merda (no sentido literal e no sentido figurado da palavra), o amor sexual não seria nunca tal como nós o conhecemos: com o coração a martelar e uma grande cegueira dos sentidos.

Se (…) a palavra merda era substituída nos livros por três pontinhos, não era seguramente por uma questão de moral. Apesar de tudo, ninguém pode pretender que a merda seja imoral! O desacordo com a merda é metafísico. O instante da defecção é a prova quotidiana do carácter inaceitável da criação. Das duas, uma: ou a merda é aceitável (então porque é que se fecham na casa de banho?) ou a maneira como nos criaram é que é inadmissível. (…)
o kitsch é (…) a negação absoluta da merda...

Os políticos (…) Mal vêem uma máquina fotográfica (…) precipitam-se para a primeira criança que esteja ao pé, põem-na ao colo e pespegam-lhe um beijo na bochecha.

… a mais pequena discordância é um escarro cuspido em plena cara da risonha fraternidade...

… o kitsch é um biombo atrás do qual se esconde a morte.

Se somos incapazes de amar, talvez seja por desejarmos ser amados, ou seja, por querermos alguma coisa do outro (o seu amor), em vez de chegarmos junto dele sem reivindicações e não querermos senão a sua simples presença.

1 comentário:

José Leite disse...

o amor é a maior metáfora da vida de cada um de nós...