20080130

A Casa Quieta, Rodrigo Guedes de Carvalho

Quero acreditar que já não estarias em casa por alturas em que cheguei mas não sei dizer. A verdade é que não te procurei. Mais uma vez. Penso que fiz as coisas do costume, (…) terei deixado o sobretudo ao acaso, abri o frigorífico (…)

Vagueei sem saber bem, o sobretudo caído alguém há-de arrumar, tu tratas disso.

(…)

Quando havia aqui o cão andaria atrás de mim, a ver-me deixar cair o sobretudo a gravata talvez, se calhar descalço-me sapatos novos, uma dor aqui junto ao tornozelo, outra acolá mais acima tudo no meu corpo mais acima, as coisas do costume. (…)

É então isto a morte. Abrires os olhos à espera de uma revelação e esbarrares no nada. Hoje entendo vê se entendes: o nada. Não algo que não esperavas, não uma desilusão maldita, uma angústia. O nada, como falar-te dele. Como quando éramos miúdos e fechávamos os olhos com força os olhos cheios de cores enevoadas agora está alaranjado agora vermelho será verde, juro que vejo um azul como o céu. Como juro não quero jurar mas vou, que me fazes falta, (…)

Tu eras. E passo a citar um sorriso fugidio, juntavas as mãos que apertavas entre as pernas quando tinhas frio tinhas sempre frio, gostavas de te rir mas queixavas-te que já Haia pouco que te fizesse rir (…)

Era suposto ter coisas para te dizer, como lhes chamar revelações, ideias, frases inteiras pensamentos, formas de chegar até ti em linguagem, ciente de que não nos inventaram forma melhor de nos aproximarmos de nos fazermos compreender.

(…)

Não te procurei porque procurar-te me daria a exacta dimensão da tua ausência, poderia vaguear minutos horas, procurar-te quem sabe chamar por ti dizer o teu nome, saberia eu que de pouco me adiantaria, seria isto pergunta ou a exacta dimensão afirmação de que não te encontras.

(…)

Não te vou procurar. E vim para casa sabendo que pela primeira vez não o faria, interrogando-me como se faz isto, repara a impossibilidade, aprender a fazer como não se faz. É então isto a morte. E vão duas vezes que te digo isto. Não te podendo procurar porque és agora nada, a morte são uns olhos de cão aos pés do teu lugar da cama, a olhar para mim, a olhar para onde te via.

(…)

O cão (…) a cirandar pelo bairro contigo na outra ponta da trela, lembro-me de o ver de vez em quando olhar para ti, só para se certificar de que ainda lá estás (…) é destas coisas que se faz estar vivo, olhar para trás e tu estares lá e sorrias

Invariavelmente sorrias

(…)

É entao isto a morte. Não estares lá e ao mesmo tempo não estares em sitio nenhum, na casa de banho, na sala, a desentortar a torneira do pátio, a regar as plantas, no supermercado, nem sequer na vizinha, não foste visitar a tua prima afastada doente, não estás à espera de taxi na avenida, não estás Mariana

(…)

não estás

Mariana

do outro lado da trela.

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